ARTIGO Dia Mundial da Saúde: o que temos a comemorar em tempos de coronavírus?
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Comemorado anualmente em 7 de abril, o Dia Mundial da Saúde coincide com a data de criação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e é comemorado desde 1950 com o objetivo de conscientizar a população sobre os diferentes fatores que afetam a saúde de todas e todos. Mas afinal, quando nos referimos a um dia para celebrar a saúde, de que saúde estamos falando? Certamente, se fizermos essa pergunta para um número qualquer de pessoas, as respostas serão as mais diferentes possíveis, pois saúde não representa a mesma coisa para todos. Tampouco é um conceito abstrato. Define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, expressando distintos valores e concepções.
No contexto brasileiro, até a Constituição Federal de 1988, a saúde era direito apenas de quem tinha carteira assinada. Os demais pagavam pelo atendimento, faziam fila na porta dos poucos hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia e da filantropia. Forjado durante a efervescência política característica das décadas de 70 a 90 em nosso país, o Sistema Único de Saúde (SUS) se vincula à perspectiva democrática que, desde o início, inspirou sua construção. A histórica 8ª Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 1986 com o tema ‘Democracia e Saúde’, mobilizou a sociedade brasileira na defesa da ampliação do conceito de saúde, elevando-o à condição de direito e servindo como norte para a elaboração das bases do capítulo da saúde na Constituição Cidadã.
A associação entre democracia e saúde permitiu-nos escrever um contrato social que reformulou a estrutura do Estado, afirmando a Saúde como direito de todos e responsabilidade do Estado mediante políticas públicas e desenhando os caminhos em direção à mudança do modelo de atenção e gestão de Saúde no Brasil. Em 2019, a realização da 16ª Conferência Nacional de Saúde, carinhosamente chamada de “8ª + 8”, retoma o tema central ‘Democracia e Saúde’ como estratégia para resgatar, atualizar e reafirmar as proposições da 8ª CNS num contexto de severos ataques ao Estado Democrático de Direito, materializado, entre outros, pela Emenda Constitucional nº 95 de 2016, mais conhecida como a “PEC da Morte”. Com a emenda, o financiamento dos diretos sociais, como a saúde e a educação, ficará congelado até o ano de 2036, afetando a vida cotidiana da população ao reduzir a capacidade de garantia das políticas sociais.
Prestes a completar 30 anos de existência e apesar da falta de recursos, e com problemas crônicos de gestão, o SUS é o único sistema de saúde pública do mundo que atende mais de 200 milhões de pessoas de forma gratuita, integral, igualitária e universal. Para mais de 75% da população brasileira, o SUS é a única opção de assistência à saúde, de uma simples consulta ao transplante de órgãos. Apesar dos inúmeros problemas, suas conquistas são referências mundiais: maior programa de vacinações e transplantes de órgãos do mundo; programa de distribuição de medicamentos contra a Aids que revolucionou o tratamento da doença nos cinco continentes; financiamento de 95% dos transplantes de órgãos; sistema de hemocentro; mais de 150 milhões de pessoas por ano atendidas pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência – SAMU; produção nacional de vacinas para as doenças negligenciadas ou emergentes e distribuição de medicamentos para o controle de doenças crônicas não transmissíveis, são alguns deles.
Em sua trajetória, o SUS tem se mantido firme na aposta de uma sociedade mais justa e solidária. É para todos. Qualquer pessoa que precise utilizar um serviço de saúde pode ser atendida pelo SUS simplesmente por ser uma pessoa; não precisa pagar por ele na hora do uso, condição que denominamos Direito Universal à Saúde. Todos os brasileiros utilizam o SUS, seja direta ou indiretamente, mas nem todas as pessoas sabem disso. Suas ações vão muito além da assistência médico hospitalar e envolvem a prevenção, a vacinação e o controle de doenças. É responsável também pela vigilância permanente nas condições sanitárias, no saneamento, nos ambientes, na segurança do trabalho, na higiene dos estabelecimentos e nos serviços. Regula o registro de medicamentos, insumos e equipamentos, controla a qualidade de alimentos e sua manipulação. Normaliza serviços e define padrões para garantir maior proteção à saúde.
O SUS contribuiu para o fortalecimento da cidadania nacional, uma vez que o direito ao atendimento à saúde é um importante direito social e que a saúde é um direito fundamental do ser humano. Trata-se de um direito de cidadania que deve se estender a todas as pessoas, principalmente nas sociedades preocupadas com o bem-estar geral, cuja organização é determinada com base em valores de solidariedade, os quais fundamentam serviços de interesse público, coletivo. Neste sentido, vale lembrar a célebre frase de Sérgio Arouca, médico sanitarista e um dos principais idealizadores do SUS no Brasil: a saúde é um processo civilizatório.
Em 2020, o Dia Mundial da Saúde ganha ainda mais relevância diante da ameaça à saúde das populações imposta pelo novo coronavírus, que desafia governos, autoridades sanitárias e sistemas de saúde, além de evidenciar vulnerabilidades provocadas pelas formas de produção e pelas condições de vida em sociedades de todo o mundo. Assim, o que temos para comemorar neste Dia Mundial da Saúde? Todos têm acompanhado as notícias sobre como o sistema de saúde brasileiro tem tido um papel central no enfrentamento da pandemia. Sem dúvida alguma, o SUS está passando por um dos maiores desafios desde sua criação. Mesmo diante das incertezas da crise desencadeada pelo aumento de casos de infecção e mortes por coronavírus no Brasil, que colocou o país de quarentena, a única certeza é a urgência de valorização do Sistema Único de Saúde.
Em momentos de crise como o que estamos vivendo, o sistema público é convocado a dar a resposta. O que está em disputa é como vivemos e como morremos, quem vive e quem morre, e a disputa entre a vida e a morte.Quem tem direito à vida? Alguns podem ser elimináveis? Lutar pela saúde é lutar pela Democracia.Enfrentar o coronavírus significa fortalecer o SUS e o trabalho dos profissionais de saúde, defender as Universidades Públicas que têm contribuído de modo inestimável para o avanço da ciência e para a formulação de políticas públicas, através da formação de profissionais qualificados e da realização de pesquisas avançadas nas mais diferentes áreas, beneficiando a saúde da população e contribuindo para um futuro melhor para o país. Sim. Neste dia mundial da saúde temos o que comemorar. Vida longa ao SUS!
Por: Vania Mello
Psicóloga Sanitarista
Professora de Saúde Coletiva no curso de
Administração de Sistemas e Serviços de Saúde, na Uergs